Antes de mais convém referir que os Randonneurs não são nenhuma sociedade secreta, ou coisa parecida. São apenas um grupo de pessoas, que praticam ciclismo de estrada, de forma não competitiva e num formato que se pode considerar como sendo de resistência. Por isso esta crónica é apenas mais um relato de uma aventura de bike.
Esta crónica começa em Setúbal, numa ensolarada tarde de sexta-feira.
À medida que as 18h se aproximavam a ansiedade ia crescendo, pois após um dia de trabalho, uma longa viagem de regresso a casa, não havia nada melhor para fazer do que arrancar à meia-noite para um percurso de ciclismo de 400 km’s. Sim, não é engano, são mesmo 400 km’s e seguidos.
Foi a convite do Almeida, que resolvi participar num Brevet dos Randonneurs Portugal, que consistia num percurso em alcatrão de 400 km’s, com início em Vila Franca de Xira.
Como essa deslocação era pequena, chegámos a horas (estranho quando se trata de eventos em que o Almeida participa).
Dado que a minha presença neste evento era clandestina (pois não me tinha inscrito) aproveitei, enquanto o Almeida assistia ao briefing da organização, para preparar as coisas para a longa viagem, nomeadamente luzes e nutrição.
O grupo de participantes era bastante pequeno (10 inscritos e mais um), o que significava que não eram muitos os malucos que iriam passar as próximas horas a fazer uma jornada épica em cima de uma bicicleta.
Logo após o arranque, o grupo seguiu compacto, em direcção ao Porto Alto. O ritmo na frente era bastante elevado, pelo que me resguardei na cauda do pelotão. Ainda faltavam muitos km’s e muitas horas para o final, pelo que o objectivo era poupar ao máximo nesta fase.
O Almeida é que não se resguardava nada, marcando juntamente com um atleta da Ota e o Ivo Pais o ritmo na frente do pelotão.
Depois de Porto Alto seguimos em direcção a Pegões, com uma subida suave e gradual até à zona de Santo Estevão. A velocidade média continuava alta, pelo que seguia sempre na parte final do grupo, na retranca.
Em Pegões seguimos para Vendas Novas, sem que antes o Almeida tivesse resolvido dificultar um pouco mais a tarefa, dado que partiu o guiador na passagem de uma cratera que existia na berma da estrada.
Na altura pensei que as rodas é que poderiam ter ficado danificadas devido ao forte impacto, mas foi o guiador que sofreu as consequências.
Ainda pensei que se parasse em Vendas Novas para comer uma bifana, mas o resto do pessoal tinha outras ideias, pelo que se fez uma pequena paragem para satisfazer necessidades fisiológicas.
Nesta parte estranhamente os dois membros da organização saíram disparados, e dois outros elementos ficaram para trás (um deles tinha vindo do norte do País e não deve ter ficado muito agradado com a companhia).
O pelotão ficava assim reduzido a 7 elementos, que seguiram sempre em bom ritmo em direcção a Montemor-o-Novo.
Aqui começavam as dificuldades, pelas subidas que iam fazendo a sua aparição (logo à entrada desta localidade). Na direcção de Évora, para onde seguimos, voltámos a apanhar mais umas subidas, demonstrando uma vez mais que é o Alentejo é plano para quem lá circula numa viatura motorizada.
Para ajudar, tive um furo na roda de trás, dado que algo metálico tinha perfurado o pneu. O Almeida e o atleta da Ota pararam para me ajudar e o resto do grupo seguiu, o que na altura me pareceu ser pouco correcto. Fiquei apreensivo, pois fazer tantos km’s com apenas 3 elementos seria muito complicado.
Um pouco mais à frente o resto do grupo estava parado junto a uma fonte à nossa espera, pois aquele era o único ponto de água até Évora.
A passagem em Évora significava que faltavam ainda 280 km’s, ou que os primeiros 120 km’s já tinham sido efectuados, conforme a perspectiva.
Parte do pessoal do grupo insistia com o Almeida para trocar o guiador dado que achavam uma loucura fazer o resto do percurso assim. Fiquei assim a perceber que parte do pessoal do pelotão era de Évora. Pude concluir uma vez mais que nestas coisas das bicicletas os Velhinhos são quase sempre os mais rijos.
Para reforçar essa ideia, sempre que o Jacinto passava pela frente do grupo o ritmo subia vertiginosamente.
O atleta da Ota, que era considerado o campeão da cadência, é que deixou de achar piada a este ritmo e ficou para trás antes de Reguengos de Monsaraz.
Eu e o Manuel Rosado junto à Albufeira do Alqueva
A passagem por Monsaraz representava a chegada à Albufeira da Barragem do Alqueva no Rio Guadiana.
O nascer do Sol no Guadiana
Foi uma visão magnífica, ver o nascer do sol e a aldeia de Monsaraz, imponente lá bem no alto. Depois da paragem para o primeiro controlo em Mourão, seguimos por território conhecido para Moura sempre pela margem esquerda do Rio.
A tendência era quase sempre de descida, excepto na aldeia de Póvoa de São Miguel, com uma subida curta mas tramada, com a parte final em empedrado (parecia o Paris-Roubaix, mas sem o Cancellara).
O Marreta junto à Albufeira do Guadiana
A subida para Moura marcou novamente o regresso às dificuldades, pelo que fiquei para trás em relação ao grupo e segui no meu ritmo até ao centro da vila.
Cerca de metade do desafio estava cumprido, com cerca de 220 km’s efectuados.
Ivo Pais na paragem em Moura
Ivo, Manuel e Jacinto na paragem em Moura
Almeida na paragem em Moura
O resto do pessoal fez o controlo e aproveitámos para reabastecer de água e comer qualquer coisa. A fase que se seguiria seria a mais complicada, pois teríamos o regresso à distante Vila Franca de Xira.
O Marreta junto à povoação de Alqueva
A parte inicial desse regresso marcava a passagem na Barragem do Alqueva, com o grupo a partir-se definitivamente, por um lado o Ivo Pais e um outro atleta que seguiram na frente em bom ritmo. Eu e o Almeida ficámos numa posição intermédia, e o Manuel Rosado e o Jacinto ficaram mais atrás.
Entre Alqueva e Portel era sempre a subir, numa distância de cerca de 20 km’s e para ajudar o calor começava a fazer a sua aparição.
Pontualmente o grupo foi-se juntando, quando esperávamos uns pelos outros, mas penso que em definitivo as diferenças de andamento começavam a notar-se.
A passagem por Portel foi um alívio tremendo, dado que o mais difícil estava feito em termos de terreno. Só faltavam no entanto 163 km’s.
O Guadiana
De Portel a Viana do Alentejo seguimos em boa velocidade, dado que o terreno era praticamente plano e numa estrada com bastantes árvores, o que nos permitia aproveitar a sombra.
Na zona de Oriola passámos junto à Albufeira da Barragem do Alvito, com uma paisagem bastante bonita. Do lado oposto à Barragem tínhamos São Bartolomeu do Outeiro bem no alto de um Monte, o que motivou um pedido de esclarecimento ao Almeida no sentido de confirmar que não íamos subir para lá.
Manuel e Jacinto na chegada a Viana do Alentejo
Em Viana no Alentejo voltámos a parar para controlo, descansar um pouco e reabastecer.
O cansaço começava a fazer-se sentir, pelo que rimo-nos um bom bocado da descrição que foi feita do adormecimento em cima da bicicleta que o Ivo tinha tido. O condutor da carrinha que vinha em sentido contrário e que ia sendo abalroado pelo Ivo é que não deve ter achado muita piada.
Almeida em Viana do Alentejo, ainda todo sorridente
O Ivo pela sua parte só pensava em bifanas, pelo que foi em demanda desse petisco.
O Jacinto e o Manuel Rosado resolveram fazer uma paragem entre Portel e Viana para dormir um pouco à sombra das árvores…….
A recomeço da aventura após a paragem em Viana
Devido a isso o Almeida e eu decidimos seguir, pois não podíamos fazer uma paragem tão prolongada. Este facto marcou a separação do grupo e até ao final eu e o Almeida seguiríamos juntos até ao final.
O descanso dos Guerreiros
De Viana seguimos até Alcáçovas, com um terreno pouco acidentado e com o calor a apertar cada vez mais. Sempre que apanhava uma fonte resolvia parar, pois aproveitava para refrescar as pernas e principalmente os pés (o alcatrão é bastante mais abrasivo que o trilho) e porque começava a ter uma dor muscular que me impedia de pedalar com normalidade.
Após a Ribeira de Alcáçovas começava a subida gradual para Casa Branca. Ao longe os montes que separavam Santiago do Escoural de Montemor metiam algum respeito, mas lembro-me de ter dito ao Almeida: “aquilo é mais fácil que um Bando”.
Tentando sobreviver no Alentejo
Em Santiago do Escoural voltámos a parar em mais uma fonte para ganhar ânimo para a subida que se seguiria. O Almeida seguiu quase sempre comigo, mas na fase final resolvi abrandar um pouco, para baixar o pulso, embora a subida não fosse muito complicada.
Até Montemor foi sempre a descer, o que foi bem-vindo para poder descansar, pois apenas prevíamos apenas parar em Vendas Novas antes do final.
Seguimos num ritmo razoável, com o vento contra, em direcção às bifanas.
Ainda tive a oportunidade de presenciar o adormecimento do Almeida que sem parar de pedalar, acordou sobressaltado, de um breve período de sono em que não se lembrava dos últimos segundos.
Fomos repartindo o esforço até Vendas Novas, onde parámos para comer uma bifana e descansar para os 63 km’s finais.
No café onde parámos devemos ter parecido uns coitadinhos, pois o nosso aspecto não era famoso, mas para isso contribuía o facto de pedalarmos há 15 horas.
A passagem em Pegões marcava a entrada na fase final do desafio e o reaparecimento do vento de frente. O vento e o facto de ser sempre a subir, de forma muito suave, até ao cruzamento de Santo Estevão tornou este troço bastante complicado.
Esta parte foi a mais difícil do ponto de vista psicológico, dado que o cansaço e o sono acumulados já só pediam descanso.
No final já se estava bem melhor......
A passagem em Sámora Correia e Porto Alto fizeram-me lembrar do pessoal dessa zona e de como teria sido porreiro alguns deles terem participado neste desafio.
A recta do Cabo pareceu interminável, e já dentro de Vila Franca, na subida para as piscinas ainda estive quase a desmontar pois as dores eram mesmo muitas, mas ainda consegui resistir.
Finalmente depois de 18h30m conseguimos chegar ao destino, cumprindo assim com o objectivo a que nos tínhamos proposto.